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Fermata

A não ser por mim, o vagão parte vazio. Em raras ocasiões, normalmente nas manhãs no meio de feriados prolongados isso acontece. Passei por isso poucas vezes. Há muitos anos era em Santana que eu entrava em um desses vagões privativos uma ou duas vezes por ano. Agora estou no extremo oposto e vez ou outra a cena se repete.

Carrego um livro mas não consigo avançar na leitura. A tranquilidade desperta mais atenção. Saboreio o momento e ouço os sons do trem: as rodas nos trilhos, o motor, a ventilação. Nenhum som humano (a não ser os que eu mesmo produzo) invade a quase quietude da máquina.

Na estação seguinte cinco pessoas entram. Uma mulher sozinha como eu escolhe um lugar à minha esquerda. Outra mulher entra com um menino de uns doze anos. Sentam-se lado a lado, mas não falam nada. Um garoto senta-se encolhido no banco do fundo e mexe no celular. Por alguma razão, mesmo mais cheio, o vagão segue sem palavras.

À minha frente está o assento preferencial. Um homem idoso se aproxima dele lentamente. Usa uma touca de lã e um casaco muito pesado para uma manhã de novembro. Em uma das mãos carrega uma sacola plástica que deixa no assento. Depois, segurando-se na barra, senta-se com movimentos mínimos. Pouso o livro sobre o colo e passo a observar o lento balé do velho. Tira a touca e a coloca sobre a sacola. Os cabelos estão despenteados e ele passa as mãos para assentá-los um pouco na cabeça. Depois, abaixa o zíper da jaqueta com dificuldade, atrapalhando os dedos longos e encurvados até que a blusa se abre. Ele se move para a frente e começa a tirar a jaqueta. Demora muito a conseguir liberar um dos braços, mas depois disso consegue se desvencilhar da blusa em dois movimentos. Dobra-a lentamente e a coloca sobre o colo. Sua mão esquerda se move em direção à sacola, mas seus dedos tentam inutilmente enganchar a alça e a cada vez voltam vazios. Repete esse movimento duas, três, quatro vezes. Cada vez com grande esforço. Observar os dedos que se movem inutilmente é desesperador. Tenho vontade de ajudar, mas apenas olho. Enfim, ele consegue enganchar a alça e puxar a sacola para si. Abre e retira com as mãos tremulas uma peça de lã. Depois pega a jaqueta e a coloca na sacola. Desdobra o pano e percebo que é um colete, que ele veste com um pouco menos de trabalho pela cabeça. Depois coloca novamente a touca e arruma com movimentos cuidadosos e repetidos os cabelos que ficaram pra fora . Durante todo esse tempo, olho para o rosto do velho. Tem uma barba rala, cabelos muito finos e grisalhos. O rosto é magro e enrugado. A aparência do homem é de muito cansaço. Não consigo evitar pensamentos sobre meu próprio cansaço, que é de outra natureza. Também não posso evitar antecipar meu próprio futuro em alguma solitária viagem alguns anos à frente.

Toda essa ação dura uns cinco minutos. Quando ele termina e fica quieto olhando para o chão, volto a atenção para o resto do vagão. O trem já parou e partiu novamente. Novas pessoas silenciosas se acumulam nos bancos. E como se obedecessem a um acordo improvável, todas as novas pessoas continuam em silêncio. Ao meu lado, um menino de uns dez anos senta-se à janela e começa a olhar para fora do vagão. Sua mãe fica ao lado. Algumas vezes ele a toca no ombro e mostra com o dedo algo interessante que vê lá fora. Ela olha, trocam um sorriso e permanecem assim, sem dizer palavra.

Na outra extremidade do vagão, mais um adolescente senta-se encolhido e se debruça sobre o celular. Quase uma imagem espelhada do outro que continua fazendo o mesmo no lado oposto.

O vagão deve ter agora umas vinte pessoas silenciosas. Meus olhos vagam lentamente de pessoa para pessoa e sigo incrédulo com essa espécie de transe que mantém o vagão dominado apenas pelos sons mecânicos do trem. Ninguém além de mim e da mulher um pouco distante à minha esquerda, que havia entrado na segunda estação, parece notar essa circunstância. Alguns parecem entediados e distantes. Outros, interessados apenas em si mesmos. Apenas a mãe e o menino ao meu lado demonstram alguma forma de comunicação. A cada vez que passo os olhos pela mulher à minha esquerda, ela também me olha. Aparentemente se interessa pelo meu interesse.

Mais uma estação. Mais pessoas entram. Algumas se levantam e saem. O vagão agora está com metade dos assentos ocupados, mas nada muda. Uma mulher que aparenta ter uns sessenta anos entra. Sua aparência me chama a atenção. Veste uma espécie de conjunto safári. Calças curtas combinando com uma jaqueta cáqui. Usa botas pesadas e meias grossas. O visual anacrônico e fora de lugar se completa por um chapéu de pano de abas moles, decorado por uma flor de croché. Parece que ela está vestida para acampar no centro de São Paulo. A cena fica ainda mais estranha quando ela se senta, abre a bolsa e retira uma agulha de tricô com um trabalho pela metade, passa a lã por trás do pescoço e começa a tricotar.

Acho graça daquele vagão silencioso e bizarro em uma manhã de sábado. O trem se aproxima de mais uma estação. Ao meu lado, o menino fala alguma coisa em voz baixa pra sua mãe, que responde. Os dois riem e começam a conversar baixinho. Como se o encanto se quebrasse, o vagão é invadido por pessoas barulhentas e falantes assim que as portas se abrem. A pausa se encerrou. Minha estação é a próxima e começo a me preparar pra sair. Guardo o livro na mochila. O velho à minha frente também começa a se movimentar pegando a sacola e a jaqueta. Quando o trem para na estação, levanto-me e saio. Passo pelo velho, enquanto ele se segura na barra ao seu lado e começa a levantar. A estação está cheia e ruidosa. Enquanto ando para as escadas, o trem fecha as portas e começa a se movimentar no mesmo sentido que eu. Olho para o trem e vejo pela última vez o velho em pé em frente à porta, pronto para desembarcar na próxima estação.

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