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Silêncio, por favor!


Há não muito tempo eu assisti ao belo filme Território do Brincar de David Reeks e Renata Meirelles, montado a partir de imagens captadas em diversas comunidades, reunindo as diferentes manifestações do brincar em terras brasileiras. Um aspecto que me chamou atenção é que quase não há falas. As crianças, quando mais encantadas pelas brincadeiras, se entregam a uma atitude contemplativa e em muitos momentos, o silêncio só é quebrado por risadas, onomatopeias, gritos e ruídos corporais. Claro que não é sempre assim. Em muitos casos, os diálogos, reais e imaginados, fazem parte do jogo e da dinâmica do brincar. Mas são muito frequentes no filme e na vida, como qualquer um que já tenha olhado uma criança brincar pode comprovar, esses momentos em que a fala não tem vez. E são nessas horas que se percebe que a criança está completamente preenchida pela ação. Todo o seu ser está no momento. É o estado mágico que alguns chamam de fluxo. Um estado necessário a atividades que requeiram toda a atenção e que, quando atingido, é capaz de tornar prazeroso qualquer ato que se realiza. Esse silêncio infantil não decorre de algum acordo tácito, um contrato não escrito e transmitido por imitação de geração a geração. Deriva tão somente do prazer simples do silêncio, do ouvir os sons que o mundo traz consigo, sem necessidade de fala. O filme nos mostra de forma muito inteligente, que isso se repete igualmente em um condomínio fechado em São Paulo, em uma vila de pescadores no Nordeste, em uma aldeia de índios e diversos outros locais.
Por que, então, ao crescer, se torna difícil sentir prazer no silêncio?  Em que momento de nossa vida surge a necessidade constante da verbalização, da narrativa permanente, que preenche com fala cada momento vivido?

Enquanto escrevo isso, os únicos sons que escuto são aqueles que vêm do teclado do computador, da minha própria respiração, da persiana batida pelo vento, dos carros que passam na avenida perto de minha casa. Ao longe ouço o som de um avião, primeiro fraco e distante e depois cada vez mais forte, até que se perde novamente entre os outros sons. Em um mundo tomado por uma constante poluição verbal, esses momentos desprovidos de fala são cada vez mais raros. E conheço muitas pessoas para quem isso é insuportável. Muitas vezes me deparo com essas pessoas no metrô ou no ônibus. Pegam o celular e ligam para alguém, não importa quem. Ou puxam conversa com a pessoa ao lado. Contam em alto volume histórias de suas vidas. Informações que deveriam ser privadas são compartilhadas de forma invasiva para os ouvidos de todos que estão em volta. E quando uma ligação termina, discam imediatamente para outra pessoa e contam tudo de novo, incapazes de fazerem em silêncio seu percurso ou de refletirem isoladamente sobre o problema que as aflige. Eu me sinto no paraíso a cada vez que encontro um vagão de metrô ou um ônibus que não seja tomado por essa insistente necessidade de tagarelar dos meus companheiros de viagem. São preciosos os momentos na rua ou no trabalho que não sejam cheios de música alta, conversas ou notificações de celular (sendo um assobio de cinco tons a sua forma mais comum e mais irritante).

Não, eu não sou uma exceção. Também me pego muitas vezes tagarelando ou ligando a TV ao chegar em casa, apenas para preencher de sons aleatórios o silêncio que, de outra forma, seria prazeroso e produtivo.

Me pergunto se isso é exclusividade da época que vivemos, impulsionada pelos celulares e pela televisão, ou se sempre existiu essa necessidade da fala, do ruído, da narração. Não falo aqui da narração que transmite uma boa história ou que porta afetos. Essa forma de narração é necessária e, infelizmente, não ocorre tanto, tragada que é pela forma mais pobre. Falo sim dessa aversão ao silêncio e à introspecção que ele exige. Da fala compulsiva e inútil, que não informa nem valoriza o momento, mas apenas afasta o temido silêncio. E ele é tão indesejável que mesmo o calar respeitoso do “minuto de silêncio”, no início de eventos esportivos, dura em média 23s. Essa é, claro, uma estatística inventada, mas é fato que não me lembro de ter presenciado um minuto de silêncio que tenha durado um minuto completo.

Provavelmente isso não seja uma coisa nova. E talvez por isso alguns lugares tenham sido eleitos para exigir o silêncio de seus ocupantes. Bibliotecas, teatros, cinemas, igrejas e cemitérios. Talvez sejam esses os últimos redutos onde as pessoas são forçadas pela pressão social a calar as vozes e prestar atenção ao momento. Diferente da imersão natural das crianças, aqui o que existe é mesmo um acordo tácito. E como tudo o que não nasce da simples necessidade, esse acordo é frequentemente incômodo, pronto a ser quebrado ao menor estímulo. Nos cinemas, os comentários baixinhos sobre o filme com a pessoa ao lado nunca foram um problema. Mas hoje é mais comum encontrar nas salas de exibição pessoas conversando em volume mais adequado à rua e muitas vezes sobre assuntos alheios ao filme. Celulares tocam e as pessoas atendem! Mesmo em teatros isso acontece às vezes, atrapalhando o desempenho dos atores no palco, em frontal desrespeito ao seu trabalho. A isso tudo se soma um outro comportamento tão irritante e tão sintomático do medo da reflexão quanto as conversas: o riso frouxo e fora de contexto. Um amigo, Eduardo Rodrigues, me explicou uma vez o que pensa ser a causa disso: vivemos a era do entretenimento. As pessoas saem de casa para ir ao cinema em busca de diversão. E existe a ideia de que diversão significa riso. Então uma pessoa que vai ao cinema se divertir, sente-se obrigada a rir para ter aquilo por que pagou. Nada mais justo, se o filme for uma comédia, ou mesmo que não seja, mas tenha situações intencionalmente engraçadas. Mas há filmes que não foram feitos para provocar risos. Nesses casos, os personagens em situação de conflito podem passar por momentos de alívio dramático que, no melhor dos casos, deveriam provocar um riso de simpatia, ou mesmo um reconhecimento de que o embaraço do personagem reforça a situação dramática. Nada mais irritante que o cinema se encher de gargalhadas em um desses momentos. Essas situações me fazem pensar se eu estarei assistindo à mesma história que os demais. Todos esses atos têm, conjuntamente, o mesmo efeito: tirar as pessoas do momento e colocá-las em um estado seguro e insípido. Um estado de isolamento do mundo, totalmente distante da imersão no momento que, quando crianças, todos vivíamos com facilidade.

Talvez um dos últimos redutos da valorização do silêncio, um dos últimos ambientes em que a etiqueta da atenção ainda pode ser preservada, seja a sala de concerto. O expectador da música erudita (mais até que o do teatro) ainda é capaz de aceitar o acordo do silêncio e até está disposto a tentar a imersão total, necessária à apreciação da música tal qual concebida pelo compositor, incluídos aí os momentos de baixa intensidade ou mesmo de silêncio total. Mas mesmo nessa situação, o silêncio pode ser indesejável quando sua duração se torna incômoda. Mesmo em uma sala de concerto, um “minuto de silêncio”, um ato não musical, não costuma durar um minuto completo. Mas e se o silêncio for parte de um ato musical?

John Cage deve ter feito essa mesma pergunta quando resolveu compor sua obra mais conhecida, 4’33” (quatro minutos e trinta e três segundos), paradoxalmente constituída de três movimentos durante os quais o instrumentista apenas se coloca em posição de execução e não toca nenhuma nota. Os três movimentos têm durações diferentes e totalizam 4 minutos e 33 segundos. Composta em 1952, a peça teve sua première no mesmo ano, executada por um pianista que sinalizou o início de cada movimento dobrando os dedos sobre o teclado, como se fosse tocar, e voltando a relaxá-los no final de cada movimento. Ao contrário do que possa parecer, Cage não estava fazendo uma piada. E ao contrário do que possa parecer, a peça não é constituída de silêncio no seu sentido absoluto. Na verdade, Cage acreditava que o silêncio não existe. Na época em que compôs essa obra, ele estava estudando o budismo Zen e se preocupava em entender exatamente o que era o silêncio. Em um de seus experimentos, ele entrou em uma câmara anecóica, um ambiente projetado para produzir a experiência mais próxima do silêncio absoluto quanto possível na Terra. Mas mesmo em um desses ambientes, não há silêncio total. No mínimo a pessoa ouve os sons de sua própria respiração, do sangue circulando dentro da orelha e de outros sons corporais. Dessa experiência e do Zen budismo, emergiu sua ideia de música e sua convicção sobre a inexistência do silêncio. Para Cage, era preciso deixar que os sons existissem por si mesmos, sem a necessidade de que fizessem sentido ou tentassem expressar emoções. Ele acreditava na aleatoriedade, na convivência entre sons e silêncios de durações inconstantes e indeterminadas. Esse era seu objetivo musical: atingir a total indeterminação. Garantir que nenhuma performance fosse igual a nenhuma outra e que cada pessoa na plateia tivesse sua própria experiência da música. E esperava com isso que essa experiência tivesse a capacidade de mudar o entendimento das pessoas a respeito da música e dos sons. À sua maneira, Cage também negava a verbalização. Para ele, uma composição de Beethoven ou Mozart eram sempre iguais e pareciam falar com o ouvinte, tentando transmitir algo, uma ideia, uma emoção. Mas seu conceito musical era mais próximo aos sons do tráfego. Esses sons não contêm qualquer significado, não falam. Nesse caso, dizia, “o som está em atividade” e ele adorava a atividade do som do tráfego, sempre diferente. Esse era o ideal de Cage: os sons fora do controle de um compositor ou de um músico. O 4’33” foi uma de suas ideias para conseguir isso em um ambiente de concerto (já que no mundo isso ocorre o tempo todo). Composta para qualquer instrumento ou conjunto de instrumentos (ou mesmo para o canto) e durando qualquer intervalo de tempo (como explicitavam as instruções da partitura oficial), não era o silêncio o que ele planejava obter. Em vez disso, queria fazer com que cada pessoa na plateia ouvisse sua própria música, seus próprios sons, os sons de seus vizinhos, sons ambientais, tosses, ruídos de cadeira, movimentos, roupas e até sons vindos de fora da sala de concerto. Nenhum compositor e nenhum regente seria capaz de controlar todos esses aspectos. E somente assim, cada ouvinte poderia ter uma composição totalmente distinta da de todas as outras pessoas no mundo. Sob esse ponto de vista, o 4’33” seria uma das experiências mais próximas de seu conceito. Posteriormente ele tentou formas diferentes de obter os mesmos resultados, mas em todos os casos, o que ele tentava era sempre trazer os espectadores para um estado reflexivo, colocá-los no momento e fazer com que o público experimentasse algo que para ele era muito importante. Eu acredito que esse estado seja próximo ao das crianças que brincam imersas em sua própria situação. Mas será que ele foi bem-sucedido em sua pretensão? Será que as pessoas realmente compreenderam sua proposta e experimentaram essa imersão?

Logo após a première, Cage comentou, a respeito das críticas à música silenciosa: “Eles entenderam errado. Não existe isso que se conhece como silêncio. O que eles pensaram ser silêncio por não saber como ouvir, estava cheio de sons acidentais”. Entre esses sons, havia o vento e a chuva fora do teatro e as próprias falas e movimentos das pessoas. Cage conseguiu estimular a reflexão a respeito dessas questões. Embora controversa, essa peça conseguiu ser aceita como música pela comunidade artística e hoje é considerada uma das obras mais importantes desse compositor.

Mas ainda hoje ela produz polêmica. Em julho de 2015, Richard Dawkins postou em sua conta do Twitter:

John Cage 4’33”
What a pretentious bollocks (I’d rather be dismissed as philistine than a gullible fool)[1]


Sua indignação fazia referência a um vídeo no YouTube, documentando a execução dessa peça pela Orquestra Sinfônica da BBC, regida por Michael Davis. A postagem causou grande repercussão, tanto de pessoas que concordavam com sua visão, como de muitas pessoas que defendiam Cage e diziam que Dawkins não entendia de música e não deveria opinar a respeito. Muitos disseram que a questão central era o silêncio e a maneira como ele era diferente para cada pessoa (mesmo mais de sessenta anos depois, o objetivo de Cage ainda é mal compreendido). Em uma postagem posterior, Dawkins explicou que entendia essa questão, mas discordava do comentarista da transmissão, que havia informado que apenas músicos qualificados poderiam executar a peça. Concluiu dizendo: “Esse rei está nu”. Concordo com esta parte da indignação de Dawkins. Não acredito que o próprio Cage imaginasse que o 4’33” deveria ser executada apenas por músicos treinados. De fato, por tudo o que ele escreveu e disse, isso era irrelevante. Sua música não pretendia se assemelhar à música tradicional. Em seu experimentalismo, provavelmente ele tinha uma visão mais democrática do fazer musical. Não se pode dizer que os sons de tráfego (que ele dizia preferir a qualquer outro tipo de som) venham de um músico treinado. Cage compôs muitas outras peças experimentais. Algumas foram projetadas para a execução por meios mecânicos ou eletrônicos. E uma de suas composições foi feita para ser “tocada” por contadores Geiger.

O que talvez tenha impedido o maior sucesso da proposta de Cage é o fato de que todas as longas horas de discussão, todos os textos escritos a respeito de sua peça silenciosa (inclusive esse) talvez se devam ao artificialismo da situação. Deve ser esse o "rei nu" que Dawkins denunciou. A experiência pomposa da sala de concerto, que, no lugar da imersão planejada por Cage, produz uma atitude atuada e convencional. É possível que a ira ou o espanto das primeiras audições, quando as pessoas conversaram ou andaram pela sala, irritadas por serem enganadas pelo compositor, tenham sido muito mais próximas do seu plano original, mas hoje não é mais possível experimentar a mesma reação em uma execução de 4’33”, porque toda a plateia sabe o que se espera dela e se divide entre os que se sentem enganados, mas ainda assim se mantêm quietos e calados, e os que se sentem parte de um evento cultural e por isso mesmo se limitam a pensar sobre o ato. Uma pequena parte deve experimentar realmente a audição do ambiente da sala, mas provavelmente essa parcela é bastante reduzida. Provavelmente o efeito desejado por Cage só seria possível se o silêncio nascesse naturalmente. Se a plateia fosse de tal forma envolvida por esse tipo de silêncio, que ele parecesse até necessário. Talvez em uma situação como essa, o público, desprevenido sobre o que se espera dele, pudesse ter a experiência única de ouvir o silêncio.

Será que isso é possível? Acredito que sim. Houve alguém muito bem-sucedido em procurar e conseguir das plateias essa atitude. Essa pessoa foi Claudio Abbado. O maestro italiano tinha essa preocupação e essa habilidade de valorizar o contraste entre a música, ela mesma, aquela de que Cage não gostava, e o silêncio, o mesmo de Cage, preenchido por respirações (suspensas, é certo) e por todo tipo de ruído existente no local. Mas esse momento que ele cultivava com cuidado, “O silêncio que se segue à música” (nas palavras de Paul Smaczny em um documentário sobre Abbado), nascia de um movimento conjunto entre regente, orquestra e público. E o maestro gostava desses momentos. Perguntado uma vez sobre o seu tipo preferido de público, ele explicou que era exatamente o público capaz de se manter por mais tempo em silêncio, sem aplaudir, após o final de uma execução, sobretudo naquelas que tratam de morte, como a Nona sinfonia de Mahler ou uma missa de Réquiem.

Para Abbado, após essas peças, “o silêncio é tal que não se pode aplaudir. E quanto mais dura o silêncio, mais se pode sentir verdadeiramente a sala e todo o público, que segura sua respiração. E isso se sente”. Conclui dizendo que isso provoca “uma acústica diferente, uma atmosfera diferente”. Em outra ocasião, ele disse que ao longo da vida aprendeu que quanto mais ele dava ao público, mais ele recebia em troca. Talvez, então, esse momento de comunhão de toda uma sala de concerto, esses breves segundos em que ele ouvia o silêncio respeitoso do público, valessem mais para ele do que a explosão de aplausos que se seguia.

Abbado se tornou famoso, além de sua própria música, pelo fato de que ele não gostava de conversar com a orquestra para explicar sua interpretação. Ele preferia interagir com os músicos, mesmo nos ensaios, através da expressão corporal e facial. Assistir Abbado regendo um concerto é uma experiência única. Seu olhar vaga de músico a músico. Seu corpo dança, ele cantarola as notas junto aos instrumentos. Quando quer um volume maior, cresce e seus braços se estendem, parecendo exceder as dimensões reais. Mas quando quer um volume pequeno, leva os dedos à boca em gesto de silêncio, aperta as sobrancelhas. Quando conduz um movimento alegre, um largo sorriso se abre, mas nos trechos melancólicos seu rosto se contrai angustiado e sofrido. A cada momento olha nos olhos dos músicos, pede atenciosamente que eles lhe concedam ouvir a música que vai em sua cabeça. E a orquestra retribui essa atenção tocando lindamente.

Abbado era uma dessas pessoas capazes de extrair emoção real da música. E a emoção aflora mais fácil ao olhar para sua figura imponente à frente da orquestra. Nenhum gesto é planejado, coreografado ou teatral. Cada expressão nasce da música e se dirige a ela.

O silêncio tão cheio de sons que Abbado era capaz de produzir era uma de suas características mais marcantes. Não por acaso Paul Smaczny produziu sobre ele dois documentários. O primeiro, de 1996, se chamava “The silence that follows music” (O silêncio que se segue à música). O segundo, mais recente, é “Hearing the Silence: Sketches for a portrait” (Ouvindo o silêncio: esboços para um retrato). Nesse, o ator Bruno Ganz descreve esses momentos de silêncio que Abbado produzia como uma experiência da qual participa todo o teatro. Um momento que todos querem manter e todos percebem acabar ao mesmo tempo, como se fosse o tempo em que “todos os sons que estiveram presentes no teatro por horas, se esvaem”. Ganz tem dificuldade em explicar como isso acontecia, de que maneira todo o público se entregava a um ato não planejado e não combinado como se fosse a única atitude possível. Por fim, desiste e diz apenas que não sabe o que era isso. Abbado chegou a isso depois de uma longa e produtiva carreira. Começando como qualquer regente, ele conduzia os ensaios solicitando e explicando aos músicos suas intenções. Mas aos poucos, foi percebendo que conseguiria resultados melhores se deixasse simplesmente que a música brotasse dos músicos. Em uma das entrevistas do filme, Kolja Blacher explica que o maestro aceitava sugestões dos músicos e conseguia juntar cada ideia em um conjunto uniforme, de tal forma que a orquestra interpretasse da forma que ele queria, sem perder a ilusão que fazia cada músico acreditar estar fazendo à sua própria maneira. E aparentemente, seu segredo para fazer isso era calar a verbalização, evitar a explicação e simplesmente fazer com que cada um ouvisse os demais. Diferente da tradição do regente autoritário, Abbado se aproximou dos músicos, que o tratavam pelo primeiro nome. O trombonista Mark Templeton explica: “Ele é o chefe, mas para os músicos da orquestra ele é Claudio”. 

Em 2003, Abbado descobriu ter um câncer, com o qual lutou até o fim de sua vida. Mas nunca interrompeu suas atividades. Para ele a música era seu melhor remédio. E mesmo durante sua doença, sempre manteve a aura de maestro jovial e amigo dos músicos. Todas as pessoas que falam sobre ele, parecem descrevê-lo como alguém que nunca perdeu sua criança ou como alguém que talvez tenha encontrado seu caminho de volta a ela depois de adulto. Parece haver um consenso entre todos os que o conheceram e trabalharam com ele de que ele realmente tinha uma atitude prazerosa com seu trabalho e consequentemente todos se sentiam felizes em trabalhar com ele. Muitos músicos destacam o olhar e a atitude joviais, quase como a de uma criança. Mesmo após (e principalmente após) a doença. E para essa criança o brinquedo era um conjunto de oitenta pessoas e instrumentos musicais. Se é possível perceber isso em um vídeo, imagino que cada pessoa que teve a sorte de estar em uma sala de concerto durante uma de suas performances deve ter tido uma experiência inesquecível.

Uma experiência que eu nunca tive e, infelizmente, jamais terei. Abbado nos deixou em 2014. Felizmente há muitos registros de suas apresentações. Eu não seria capaz de escolher uma apenas como o melhor exemplo, mas para concluir a questão da sua forma muito particular de silêncio, seria bom assistir, além do documentário já citado, duas execuções da mesma peça: a Nona Sinfonia de Mahler.

Embora tenha iniciado a composição da Décima sinfonia, a Nona foi a última grande obra que Mahler completou. Há quem diga que essa é sua sinfonia de despedida, pois o compositor estava doente quando a fazia, e havia acabado de perder sua filha. Ele morreu em 8 de maio de 1911, sem ouvir sua sinfonia, que só teve sua estreia após sua morte, em 26 de junho de 1912. Embora não seja a mais longa das sinfonias de Mahler, a Nona tem dimensões monumentais (entre uma hora e vinte e uma hora e trinta, dependendo da execução). Toda a peça é melancólica, embora haja dois movimentos mais rápidos e festivos. O quarto e último movimento é um Andante – Muito Lento, que ao final se torna ainda mais lento. Bernstein acreditava que esse movimento representa a própria morte. O final é um longo trecho em pianíssimo, cortado apenas por pequenos espasmos em crescendo, até terminar em um longo acorde que morre tranquilamente. Abbado foi um dos maiores intérpretes de Mahler e, sobretudo nesse final, o silêncio que se segue à música, que ele tanto prezava, encontra as condições ideais para existir.

Na primeira versão que eu conheço, executada pela Orquestra Jovem Gustav Mahler em 2004, esse silêncio parece ser interrompido antes de atingir seu desfecho natural por uma explosão de aplausos de um espectador mais ansioso ou menos sintonizado ao momento. Ainda assim, ele dura cerca de um minuto e 20 segundos. Mesmo após o início dos aplausos, Abbado permanece um tempo imóvel e de olhos fechados e finalmente se vira para receber a ovação.

Mas é na execução de 2010, com a Orquestra do Festival de Lucerna, que o silêncio chega ao seu auge. Na apresentação da Nona, em agosto de 2010, ele termina o pianíssimo com seu habitual gesto dos dedos à boca. Finalmente abre os braços. O esquerdo em um gesto de apaziguamento. O direito, com a batuta, continua pulsando de forma quase imperceptível até que todas as notas morrem. Os músicos permanecem em posição de execução, sem tocar. O maestro fecha os braços lentamente em direção ao centro do corpo, a batuta virada para cima. A mão esquerda pousa lentamente sobre a batuta no peito. O rosto assume uma expressão chorosa e talvez ele derrame uma lágrima. Os músicos, após um tempo, recolhem os instrumentos sobre o colo. Todos permanecem em silêncio. Agora as duas mãos do maestro estão baixadas, juntas à frente do corpo. Ele permanece olhando para baixo, com expressão tranquila por um longo tempo. Enfim, parece soltar a respiração e baixa levemente os ombros. Imediatamente o público começa a aplaudir. Dois minutos e dez. Esse é o tempo em que o teatro inteiro respirou junto.

Não sei se ele ou qualquer outra pessoa jamais fez a ligação entre os silêncios que ele tanto amava e a obra de Cage. Mas não tenho a menor dúvida de que o resultado que ele obtinha nesses momentos deve se assemelhar àquele conceito tão fugaz do compositor americano. É certo que, independentemente de qualquer teorização ou tentativa de explicação, esses momentos devem estar entre os mais memoráveis já vividos por aqueles que participaram deles algum dia. E certamente são alguns dos silêncios mais bem executados na história da música.




[1]Em tradução aproximada:  John Cage 4’33”. Que bobagem pretenciosa (eu prefiro ser tomado por um bárbaro do que ser um tolo ingênuo)

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