Há não muito tempo eu assisti ao belo filme Território do
Brincar de David Reeks e Renata Meirelles, montado a partir
de imagens captadas em diversas comunidades, reunindo as diferentes
manifestações do brincar em terras brasileiras. Um aspecto que me chamou
atenção é que quase não há falas. As crianças, quando mais encantadas pelas
brincadeiras, se entregam a uma atitude contemplativa e em muitos momentos, o
silêncio só é quebrado por risadas, onomatopeias, gritos e ruídos corporais.
Claro que não é sempre assim. Em muitos casos, os diálogos, reais e imaginados,
fazem parte do jogo e da dinâmica do brincar. Mas são muito frequentes no filme
e na vida, como qualquer um que já tenha olhado uma criança brincar pode comprovar, esses momentos em que a fala não tem
vez. E são nessas horas que se percebe que a criança está completamente
preenchida pela ação. Todo o seu ser está no momento. É o estado mágico que
alguns chamam de fluxo. Um estado necessário a atividades que requeiram toda a
atenção e que, quando atingido, é capaz de tornar prazeroso qualquer ato que se
realiza. Esse silêncio infantil não decorre de algum acordo tácito, um contrato
não escrito e transmitido por imitação de geração a geração. Deriva tão somente
do prazer simples do silêncio, do ouvir os
sons que o mundo traz consigo, sem necessidade de fala. O filme nos mostra de forma muito inteligente, que isso se repete igualmente em um condomínio
fechado em São Paulo, em uma vila de pescadores no Nordeste, em uma aldeia de
índios e diversos outros locais.
Por que, então, ao crescer, se torna difícil sentir prazer
no silêncio? Em que momento de nossa vida
surge a necessidade constante da verbalização, da narrativa permanente, que preenche
com fala cada momento vivido?
Enquanto escrevo isso, os únicos sons que escuto são aqueles
que vêm do teclado do computador, da minha própria respiração, da persiana
batida pelo vento, dos carros que passam na avenida perto de minha casa. Ao
longe ouço o som de um avião, primeiro fraco e distante e depois cada vez mais
forte, até que se perde novamente entre os outros sons. Em um mundo tomado por
uma constante poluição verbal, esses momentos desprovidos de fala são cada vez
mais raros. E conheço muitas pessoas para quem isso é insuportável. Muitas
vezes me deparo com essas pessoas no metrô ou no ônibus. Pegam o celular e
ligam para alguém, não importa quem. Ou puxam conversa com a pessoa ao lado.
Contam em alto volume histórias de suas vidas. Informações que deveriam ser
privadas são compartilhadas de forma invasiva para os ouvidos de todos que estão em volta. E quando uma ligação termina, discam imediatamente para outra
pessoa e contam tudo de novo, incapazes de fazerem em silêncio seu percurso ou
de refletirem isoladamente sobre o problema que as aflige. Eu me sinto no
paraíso a cada vez que encontro um vagão de metrô ou um ônibus que não seja
tomado por essa insistente necessidade de tagarelar dos meus companheiros de
viagem. São preciosos os momentos na rua ou no trabalho que não sejam cheios de
música alta, conversas ou notificações de celular (sendo um assobio de cinco
tons a sua forma mais comum e mais irritante).
Não, eu não sou uma exceção. Também me pego muitas vezes
tagarelando ou ligando a TV ao chegar em casa, apenas para preencher de sons
aleatórios o silêncio que, de outra forma, seria prazeroso e produtivo.
Me pergunto se isso é exclusividade da época que vivemos,
impulsionada pelos celulares e pela televisão, ou se sempre existiu essa
necessidade da fala, do ruído, da narração. Não falo aqui da narração que
transmite uma boa história ou que porta afetos. Essa forma de narração é
necessária e, infelizmente, não ocorre tanto, tragada que é pela forma mais
pobre. Falo sim dessa aversão ao silêncio e à introspecção que ele exige. Da
fala compulsiva e inútil, que não informa nem valoriza o momento, mas apenas
afasta o temido silêncio. E ele é tão indesejável que mesmo o calar respeitoso
do “minuto de silêncio”, no início de eventos esportivos, dura em média 23s. Essa
é, claro, uma estatística inventada, mas é fato que não me lembro de ter
presenciado um minuto de silêncio que tenha durado um minuto completo.
Provavelmente isso não seja uma coisa nova. E talvez por
isso alguns lugares tenham sido eleitos para exigir o silêncio de seus
ocupantes. Bibliotecas, teatros, cinemas, igrejas e cemitérios. Talvez sejam
esses os últimos redutos onde as pessoas são forçadas pela pressão social a
calar as vozes e prestar atenção ao momento. Diferente da imersão natural das
crianças, aqui o que existe é mesmo um acordo tácito. E como tudo o que não
nasce da simples necessidade, esse acordo é frequentemente incômodo, pronto a
ser quebrado ao menor estímulo. Nos cinemas, os comentários baixinhos sobre o
filme com a pessoa ao lado nunca foram um problema. Mas hoje é mais comum
encontrar nas salas de exibição pessoas conversando em volume mais adequado à
rua e muitas vezes sobre assuntos alheios ao filme. Celulares tocam e as
pessoas atendem! Mesmo em teatros isso acontece às vezes, atrapalhando o
desempenho dos atores no palco, em frontal desrespeito ao seu trabalho. A isso
tudo se soma um outro comportamento tão irritante e tão sintomático do medo da
reflexão quanto as conversas: o riso frouxo e fora de contexto. Um amigo,
Eduardo Rodrigues, me explicou uma vez o que pensa ser a causa disso: vivemos a
era do entretenimento. As pessoas saem de casa para ir ao cinema em busca de
diversão. E existe a ideia de que diversão significa riso. Então uma pessoa que
vai ao cinema se divertir, sente-se obrigada a rir para ter aquilo por que
pagou. Nada mais justo, se o filme for uma comédia, ou mesmo que não seja, mas
tenha situações intencionalmente engraçadas. Mas há filmes que não foram feitos
para provocar risos. Nesses casos, os personagens em situação de conflito podem
passar por momentos de alívio dramático que, no melhor dos casos, deveriam
provocar um riso de simpatia, ou mesmo um reconhecimento de que o embaraço do
personagem reforça a situação dramática. Nada mais irritante que o cinema se
encher de gargalhadas em um desses momentos. Essas situações me fazem pensar se
eu estarei assistindo à mesma história que os demais. Todos esses
atos têm, conjuntamente, o mesmo efeito: tirar as pessoas
do momento e colocá-las em um estado seguro e insípido. Um estado de isolamento
do mundo, totalmente distante da imersão no momento que, quando crianças, todos vivíamos com facilidade.
Talvez um dos últimos redutos da valorização do silêncio, um
dos últimos ambientes em que a etiqueta da atenção ainda pode ser preservada,
seja a sala de concerto. O expectador da música erudita (mais até que o
do teatro) ainda é capaz de aceitar o acordo do silêncio e até está disposto a tentar
a imersão total, necessária à apreciação da música tal qual concebida pelo
compositor, incluídos aí os momentos de baixa intensidade ou mesmo de silêncio
total. Mas mesmo nessa situação, o silêncio pode ser indesejável quando sua
duração se torna incômoda. Mesmo em uma sala de concerto, um “minuto de
silêncio”, um ato não musical, não costuma durar um minuto completo. Mas e se o
silêncio for parte de um ato musical?
John Cage deve ter feito essa mesma pergunta quando resolveu
compor sua obra mais conhecida, 4’33” (quatro minutos e trinta e três
segundos), paradoxalmente constituída de três movimentos durante os quais o
instrumentista apenas se coloca em posição de execução e não toca nenhuma nota.
Os três movimentos têm durações diferentes e totalizam 4 minutos e 33 segundos.
Composta em 1952, a peça teve sua première no mesmo ano, executada por um
pianista que sinalizou o início de cada movimento dobrando os dedos sobre o
teclado, como se fosse tocar, e voltando a relaxá-los no final de cada
movimento. Ao contrário do que possa parecer, Cage não estava fazendo uma
piada. E ao contrário do que possa parecer, a peça não é constituída de
silêncio no seu sentido absoluto. Na verdade, Cage acreditava que o silêncio não
existe. Na época em que compôs essa obra, ele estava estudando o budismo Zen e
se preocupava em entender exatamente o que era o silêncio. Em um de seus
experimentos, ele entrou em uma câmara anecóica, um ambiente projetado para
produzir a experiência mais próxima do silêncio absoluto quanto possível na
Terra. Mas mesmo em um desses ambientes, não há silêncio total. No mínimo a
pessoa ouve os sons de sua própria respiração, do sangue circulando dentro da orelha
e de outros sons corporais. Dessa experiência e do Zen budismo, emergiu sua
ideia de música e sua convicção sobre a inexistência do silêncio. Para Cage,
era preciso deixar que os sons existissem por si mesmos, sem a necessidade de
que fizessem sentido ou tentassem expressar emoções. Ele acreditava na
aleatoriedade, na convivência entre sons e silêncios de durações inconstantes e
indeterminadas. Esse era seu objetivo musical: atingir a total indeterminação.
Garantir que nenhuma performance fosse igual a nenhuma outra e que cada pessoa
na plateia tivesse sua própria experiência da música. E esperava com isso que essa experiência tivesse a capacidade de mudar o entendimento das pessoas a respeito da música e dos sons. À sua maneira, Cage
também negava a verbalização. Para ele, uma composição de Beethoven ou Mozart
eram sempre iguais e pareciam falar com o ouvinte, tentando transmitir algo,
uma ideia, uma emoção. Mas seu conceito musical era mais próximo aos sons
do tráfego. Esses sons não contêm qualquer significado, não falam. Nesse caso,
dizia, “o som está em atividade” e ele adorava a atividade do som do tráfego, sempre
diferente. Esse era o ideal de Cage: os sons fora do controle de um compositor
ou de um músico. O 4’33” foi uma de suas ideias para conseguir isso em um
ambiente de concerto (já que no mundo isso ocorre o tempo todo). Composta para qualquer instrumento ou conjunto de
instrumentos (ou mesmo para o canto) e durando qualquer intervalo de tempo
(como explicitavam as instruções da partitura oficial), não era o silêncio o
que ele planejava obter. Em vez disso, queria fazer com que cada pessoa na
plateia ouvisse sua própria música, seus próprios sons, os sons de
seus vizinhos, sons ambientais, tosses, ruídos de cadeira,
movimentos, roupas e até sons vindos de fora da sala de concerto. Nenhum compositor e nenhum regente seria capaz de controlar
todos esses aspectos. E somente assim, cada ouvinte poderia ter uma composição
totalmente distinta da de todas as outras pessoas no mundo. Sob esse ponto de
vista, o 4’33” seria uma das experiências mais próximas de seu conceito.
Posteriormente ele tentou formas diferentes de obter os mesmos resultados, mas
em todos os casos, o que ele tentava era sempre trazer os espectadores para um
estado reflexivo, colocá-los no momento e fazer com que o público experimentasse
algo que para ele era muito importante. Eu acredito que esse estado seja
próximo ao das crianças que brincam imersas em sua própria situação. Mas será
que ele foi bem-sucedido em sua pretensão? Será que as pessoas realmente
compreenderam sua proposta e experimentaram essa imersão?
Logo após a première, Cage comentou, a respeito das críticas à música silenciosa: “Eles entenderam errado. Não existe isso que
se conhece como silêncio. O que eles pensaram ser silêncio por não saber como
ouvir, estava cheio de sons acidentais”. Entre esses sons, havia o vento e a
chuva fora do teatro e as próprias falas e movimentos das pessoas. Cage conseguiu estimular a reflexão a respeito dessas questões. Embora
controversa, essa peça conseguiu ser aceita como música pela comunidade
artística e hoje é considerada uma das obras mais importantes desse compositor.
Mas ainda hoje ela produz polêmica. Em
julho de 2015, Richard Dawkins postou em sua conta do Twitter:
John Cage 4’33”
What a pretentious bollocks (I’d rather be dismissed as philistine than a gullible fool)[1]
What a pretentious bollocks (I’d rather be dismissed as philistine than a gullible fool)[1]
Sua indignação fazia referência a um vídeo no YouTube,
documentando a execução dessa peça pela Orquestra Sinfônica da BBC, regida por
Michael Davis. A postagem causou grande repercussão, tanto de pessoas que
concordavam com sua visão, como de muitas pessoas que defendiam Cage e diziam
que Dawkins não entendia de música e não deveria opinar a respeito. Muitos
disseram que a questão central era o silêncio e a maneira como ele era diferente
para cada pessoa (mesmo mais de sessenta anos depois, o objetivo de Cage ainda
é mal compreendido). Em uma postagem posterior, Dawkins explicou que entendia essa
questão, mas discordava do comentarista da transmissão, que havia informado que
apenas músicos qualificados poderiam executar a peça. Concluiu dizendo: “Esse
rei está nu”. Concordo com esta parte da indignação de Dawkins. Não acredito
que o próprio Cage imaginasse que o 4’33” deveria ser executada apenas por
músicos treinados. De fato, por tudo o que ele escreveu e disse, isso era
irrelevante. Sua música não pretendia se assemelhar à música tradicional. Em
seu experimentalismo, provavelmente ele tinha uma visão mais democrática do
fazer musical. Não se pode dizer que os sons de tráfego (que ele dizia preferir
a qualquer outro tipo de som) venham de um músico treinado. Cage compôs muitas
outras peças experimentais. Algumas foram projetadas para a execução por meios
mecânicos ou eletrônicos. E uma de suas composições foi feita para ser
“tocada” por contadores Geiger.
O que talvez tenha impedido o maior sucesso da proposta de Cage é o fato
de que todas as longas horas de discussão, todos os textos escritos a respeito
de sua peça silenciosa (inclusive esse) talvez se devam ao artificialismo da
situação. Deve ser esse o "rei nu" que Dawkins denunciou. A experiência pomposa
da sala de concerto, que, no lugar da imersão planejada por Cage, produz uma
atitude atuada e convencional. É possível que a ira ou o espanto das primeiras
audições, quando as pessoas conversaram ou andaram pela sala, irritadas por
serem enganadas pelo compositor, tenham sido muito mais próximas do seu plano
original, mas hoje não é mais possível experimentar a mesma reação em uma
execução de 4’33”, porque toda a plateia sabe o que se espera dela e se divide
entre os que se sentem enganados, mas ainda assim se mantêm quietos e calados,
e os que se sentem parte de um evento cultural e por isso mesmo se limitam a
pensar sobre o ato. Uma pequena parte deve experimentar realmente a audição do
ambiente da sala, mas provavelmente essa parcela é bastante reduzida. Provavelmente
o efeito desejado por Cage só seria possível se o silêncio nascesse
naturalmente. Se a plateia fosse de tal forma envolvida por esse tipo de silêncio,
que ele parecesse até necessário. Talvez em uma situação como essa, o público,
desprevenido sobre o que se espera dele, pudesse ter a experiência única de
ouvir o silêncio.
Será que isso é possível? Acredito que sim. Houve alguém
muito bem-sucedido em procurar e conseguir das plateias essa atitude. Essa
pessoa foi Claudio Abbado. O maestro italiano tinha essa preocupação e essa
habilidade de valorizar o contraste entre a música, ela mesma, aquela de que
Cage não gostava, e o silêncio, o mesmo de Cage, preenchido por respirações
(suspensas, é certo) e por todo tipo de ruído existente no local. Mas esse
momento que ele cultivava com cuidado, “O silêncio que se segue à música” (nas
palavras de Paul Smaczny em um documentário sobre Abbado), nascia de um
movimento conjunto entre regente, orquestra e público. E o maestro gostava
desses momentos. Perguntado uma vez sobre o seu tipo preferido de público, ele
explicou que era exatamente o público capaz de se manter por mais tempo em
silêncio, sem aplaudir, após o final de uma execução, sobretudo naquelas que
tratam de morte, como a Nona sinfonia de Mahler ou uma missa de Réquiem.
Para Abbado, após essas peças, “o silêncio é tal que não se pode aplaudir. E quanto mais dura o silêncio, mais se pode sentir verdadeiramente a sala e todo o público, que segura sua respiração. E isso se sente”. Conclui dizendo que isso provoca “uma acústica diferente, uma atmosfera diferente”. Em outra ocasião, ele disse que ao longo da vida aprendeu que quanto mais ele dava ao público, mais ele recebia em troca. Talvez, então, esse momento de comunhão de toda uma sala de concerto, esses breves segundos em que ele ouvia o silêncio respeitoso do público, valessem mais para ele do que a explosão de aplausos que se seguia.
Para Abbado, após essas peças, “o silêncio é tal que não se pode aplaudir. E quanto mais dura o silêncio, mais se pode sentir verdadeiramente a sala e todo o público, que segura sua respiração. E isso se sente”. Conclui dizendo que isso provoca “uma acústica diferente, uma atmosfera diferente”. Em outra ocasião, ele disse que ao longo da vida aprendeu que quanto mais ele dava ao público, mais ele recebia em troca. Talvez, então, esse momento de comunhão de toda uma sala de concerto, esses breves segundos em que ele ouvia o silêncio respeitoso do público, valessem mais para ele do que a explosão de aplausos que se seguia.
Abbado se tornou famoso, além de sua própria música, pelo
fato de que ele não gostava de conversar com a orquestra para explicar sua
interpretação. Ele preferia interagir com os músicos, mesmo nos ensaios, através
da expressão corporal e facial. Assistir Abbado regendo um concerto é uma
experiência única. Seu olhar vaga de músico a músico. Seu corpo dança, ele
cantarola as notas junto aos instrumentos. Quando quer um volume maior, cresce
e seus braços se estendem, parecendo exceder as dimensões reais. Mas quando
quer um volume pequeno, leva os dedos à boca em gesto de silêncio, aperta as
sobrancelhas. Quando conduz um movimento alegre, um largo sorriso se abre, mas
nos trechos melancólicos seu rosto se contrai angustiado e sofrido. A cada
momento olha nos olhos dos músicos, pede atenciosamente que eles lhe concedam
ouvir a música que vai em sua cabeça. E a orquestra retribui essa atenção
tocando lindamente.
Abbado era uma dessas pessoas capazes de extrair emoção real
da música. E a emoção aflora mais fácil ao olhar para sua figura imponente à
frente da orquestra. Nenhum gesto é planejado, coreografado ou teatral. Cada
expressão nasce da música e se dirige a ela.
O silêncio tão cheio de sons que Abbado era capaz de
produzir era uma de suas características mais marcantes. Não por acaso Paul
Smaczny produziu sobre ele dois documentários. O primeiro, de 1996, se chamava
“The silence that follows music” (O silêncio que se segue à música). O segundo,
mais recente, é “Hearing the Silence: Sketches for a portrait” (Ouvindo o
silêncio: esboços para um retrato). Nesse, o ator Bruno Ganz descreve esses
momentos de silêncio que Abbado produzia como uma experiência da qual participa
todo o teatro. Um momento que todos querem manter e todos percebem acabar ao
mesmo tempo, como se fosse o tempo em que “todos os sons que estiveram
presentes no teatro por horas, se esvaem”. Ganz tem dificuldade em explicar
como isso acontecia, de que maneira todo o público se entregava a um ato não
planejado e não combinado como se fosse a única atitude possível. Por fim,
desiste e diz apenas que não sabe o que era isso. Abbado chegou
a isso depois de uma longa e produtiva carreira. Começando como qualquer
regente, ele conduzia os ensaios solicitando e explicando aos músicos suas
intenções. Mas aos poucos, foi percebendo que conseguiria resultados melhores
se deixasse simplesmente que a música brotasse dos músicos. Em uma
das entrevistas do filme, Kolja Blacher explica que o maestro aceitava
sugestões dos músicos e conseguia juntar cada ideia em um
conjunto uniforme, de tal forma que a orquestra interpretasse da forma que ele
queria, sem perder a ilusão que fazia cada músico acreditar estar fazendo à sua
própria maneira. E aparentemente, seu segredo para fazer isso era calar a
verbalização, evitar a explicação e simplesmente fazer com que cada um ouvisse
os demais. Diferente da tradição do regente autoritário, Abbado se aproximou
dos músicos, que o tratavam pelo primeiro nome. O trombonista Mark Templeton
explica: “Ele é o chefe, mas para os músicos da orquestra ele é Claudio”.
Em 2003, Abbado descobriu ter um câncer, com o qual lutou até o fim de sua vida. Mas nunca interrompeu suas atividades. Para ele a música era seu melhor remédio. E mesmo durante sua doença, sempre manteve a aura de maestro jovial e amigo dos músicos. Todas as pessoas que falam sobre ele, parecem descrevê-lo como alguém que nunca perdeu sua criança ou como alguém que talvez tenha encontrado seu caminho de volta a ela depois de adulto. Parece haver um consenso entre todos os que o conheceram e trabalharam com ele de que ele realmente tinha uma atitude prazerosa com seu trabalho e consequentemente todos se sentiam felizes em trabalhar com ele. Muitos músicos destacam o olhar e a atitude joviais, quase como a de uma criança. Mesmo após (e principalmente após) a doença. E para essa criança o brinquedo era um conjunto de oitenta pessoas e instrumentos musicais. Se é possível perceber isso em um vídeo, imagino que cada pessoa que teve a sorte de estar em uma sala de concerto durante uma de suas performances deve ter tido uma experiência inesquecível.
Uma experiência que eu nunca tive e, infelizmente, jamais terei. Abbado nos deixou em 2014. Felizmente há muitos registros de suas apresentações. Eu não seria capaz de escolher uma apenas como o melhor exemplo, mas para concluir a questão da sua forma muito particular de silêncio, seria bom assistir, além do documentário já citado, duas execuções da mesma peça: a Nona Sinfonia de Mahler.
Em 2003, Abbado descobriu ter um câncer, com o qual lutou até o fim de sua vida. Mas nunca interrompeu suas atividades. Para ele a música era seu melhor remédio. E mesmo durante sua doença, sempre manteve a aura de maestro jovial e amigo dos músicos. Todas as pessoas que falam sobre ele, parecem descrevê-lo como alguém que nunca perdeu sua criança ou como alguém que talvez tenha encontrado seu caminho de volta a ela depois de adulto. Parece haver um consenso entre todos os que o conheceram e trabalharam com ele de que ele realmente tinha uma atitude prazerosa com seu trabalho e consequentemente todos se sentiam felizes em trabalhar com ele. Muitos músicos destacam o olhar e a atitude joviais, quase como a de uma criança. Mesmo após (e principalmente após) a doença. E para essa criança o brinquedo era um conjunto de oitenta pessoas e instrumentos musicais. Se é possível perceber isso em um vídeo, imagino que cada pessoa que teve a sorte de estar em uma sala de concerto durante uma de suas performances deve ter tido uma experiência inesquecível.
Uma experiência que eu nunca tive e, infelizmente, jamais terei. Abbado nos deixou em 2014. Felizmente há muitos registros de suas apresentações. Eu não seria capaz de escolher uma apenas como o melhor exemplo, mas para concluir a questão da sua forma muito particular de silêncio, seria bom assistir, além do documentário já citado, duas execuções da mesma peça: a Nona Sinfonia de Mahler.
Embora tenha
iniciado a composição da Décima sinfonia, a Nona foi a última grande obra que
Mahler completou. Há quem diga que essa é sua sinfonia de despedida, pois o
compositor estava doente quando a fazia, e havia acabado de perder sua filha. Ele
morreu em 8 de maio de 1911, sem ouvir sua sinfonia, que só teve sua estreia
após sua morte, em 26 de junho de 1912. Embora não seja a mais longa das
sinfonias de Mahler, a Nona tem dimensões monumentais (entre uma hora e vinte e
uma hora e trinta, dependendo da execução). Toda a peça é melancólica, embora
haja dois movimentos mais rápidos e festivos. O quarto e último movimento é um
Andante – Muito Lento, que ao final se torna ainda mais lento. Bernstein
acreditava que esse movimento representa a própria morte. O final é um longo
trecho em pianíssimo, cortado apenas por pequenos espasmos em crescendo, até
terminar em um longo acorde que morre tranquilamente. Abbado foi um dos maiores
intérpretes de Mahler e, sobretudo nesse final, o silêncio que se segue à
música, que ele tanto prezava, encontra as condições ideais para existir.
Na primeira versão
que eu conheço, executada pela Orquestra Jovem Gustav Mahler em 2004, esse
silêncio parece ser interrompido antes de atingir seu desfecho natural por uma
explosão de aplausos de um espectador mais ansioso ou menos sintonizado ao
momento. Ainda assim, ele dura cerca de um minuto e 20 segundos. Mesmo após o
início dos aplausos, Abbado permanece um tempo imóvel e de olhos fechados e
finalmente se vira para receber a ovação.
Mas é na execução
de 2010, com a Orquestra do Festival de Lucerna, que o silêncio chega ao seu
auge. Na apresentação da Nona, em agosto de 2010, ele termina o pianíssimo com
seu habitual gesto dos dedos à boca. Finalmente abre os braços. O esquerdo em
um gesto de apaziguamento. O direito, com a batuta, continua pulsando de forma
quase imperceptível até que todas as notas morrem. Os músicos permanecem em
posição de execução, sem tocar. O maestro fecha os braços lentamente em direção
ao centro do corpo, a batuta virada para cima. A mão esquerda pousa lentamente
sobre a batuta no peito. O rosto assume uma expressão chorosa e talvez ele
derrame uma lágrima. Os músicos, após um tempo, recolhem os instrumentos sobre
o colo. Todos permanecem em silêncio. Agora as duas mãos do maestro estão
baixadas, juntas à frente do corpo. Ele permanece olhando para baixo, com expressão tranquila por um longo
tempo. Enfim, parece soltar a respiração e baixa levemente os ombros.
Imediatamente o público começa a aplaudir. Dois minutos e dez. Esse é o tempo
em que o teatro inteiro respirou junto.
Não sei se ele ou qualquer outra pessoa jamais fez a ligação
entre os silêncios que ele tanto amava e a obra de Cage. Mas não tenho a menor
dúvida de que o resultado que ele obtinha nesses momentos deve se assemelhar
àquele conceito tão fugaz do compositor americano. É certo que,
independentemente de qualquer teorização ou tentativa de explicação, esses
momentos devem estar entre os mais memoráveis já vividos por aqueles que participaram
deles algum dia. E certamente são alguns dos silêncios mais bem executados na
história da música.
[1]Em
tradução aproximada: John Cage 4’33”.
Que bobagem pretenciosa (eu prefiro ser tomado por um bárbaro do que ser um tolo ingênuo)
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