Ainda sob o efeito do Alemanha 7 x 1 Brasil, comecei a pensar em momentos catastróficos da minha vida. Percebi que tive muitas perdas, algumas irreparáveis. Outras, que pareciam irreparáveis, perderam o significado depois de algum tempo. Entre as da última categoria, eu me lembrei da maior humilhação que já sofri.
Entre 87 e 90 eu fiz parte de uma banda de música no Jd. São Paulo. Ainda guardo alguns bons amigos daquela época. No final de cada ano, fazíamos uma festa com um sarau. Pequenos grupos eram formados para tocar uma ou duas peças cada.
Naquele ano, acho que em 89, todos os trompistas resolveram apresentar um número. Um pout-pourri de músicas eruditas com destaque para temas escritos para trompas. Éramos cinco: O Davi, que fez o arranjo, o Marcelo, o Flávio, o Almir e eu. O arranjo não era muito complexo. Alguns temas se sucediam, tocados a três vozes. Não havia solos nem maiores complexidades. Mas em sua simplicidade os temas festivos e solenes de diversas épocas soavam muito bem. A peça se iniciava e encerrava com uma fanfarra da sinfonia Nº 31 de Haydn, não por acaso, conhecida como "hornsignal" (o chamado das trompas). Entre os dois extremos, temas de Beethoven, Mahler e Mozart cuidadosamente interligados e mesclados. Ensaiamos nossas partes separadamente e, se me lembro bem, fizemos dois ensaios em conjunto. O primeiro, na minha casa. Percebemos que tínhamos um pequeno problema para sincronizar a entrada da fanfarra final. Tentamos algumas alternativas que envolviam uma pulsação marcada pelo Davi, com o próprio instrumento. Funcionava bem, mas por alguma razão que pareceu boa na hora, achamos melhor que cada um contasse mentalmente. Depois de tentarmos umas quinze vezes, finalmente parecia que tínhamos encontrado o tempo certo e encerramos o ensaio.
O segundo ensaio foi na véspera do espetáculo, na casa do Marcelo. Iríamos apenas refinar alguns detalhes, mas estávamos satisfeitos com nosso número. Estava chovendo naquele dia. A casa do Marcelo tinha uma escadaria que levava da garagem à sala onde estávamos nos preparando pra ensaiar. Faltava chegar uma pessoa. Quando ela finalmente chegou, o Marcelo saiu para abrir o portão. Eu o vi sair pela porta e sumir. A próxima coisa que ouvi foram gritos. O Marcelo tinha escorregado e caído. Se machucou muito e naquele momento o ensaio foi cancelado. Alguns foram ao pronto-socorro com ele e outros foram embora. Felizmente, embora machucado, não houve nada sério. Mas perdemos um jogador, digo músico, não ensaiamos nada e ainda ficamos bem abalados com tudo isso.
Quando chegou a nossa vez, fomos até o palco, nos sentamos com as partituras à frente e começamos. A entrada foi muito bem e o segundo tema, acho que era de Mozart, também. Tivemos pequenos problemas de afinação no Mahler e chegamos ao Beethoven sem muitos percalços. Mas esse tema acabou e chegou o momento em que tínhamos que contar mentalmente e entrar novamente no Haydn. Não sei dizer ao certo o que houve a seguir. Minha memória é confusa nessa parte. Cada um contou algo inteiramente diferente, entrou em momentos diferentes e em andamentos diferentes. O caos que se ouviu a seguir só foi superado pelo fato de que, sem concluir, alguém parou, depois outro, e outro, até que, sem saber bem o que fazer alguém levantou e saiu pela frente do palco. Os outros foram saindo pelos lados e pelo fundo. O público, que deve ter ficado tão confuso quanto nós, começou a aplaudir, mas não havia ninguém no palco para receber os aplausos.
E foi assim a minha maior humilhação pública. Hoje, durante o jogo, houve um momento em que eu fiquei com pena daqueles garotos. Pensei se não seria melhor simplesmente saírem do campo, um a um. Cada um por um lado, deixando confusos adversários e torcedores. A regra, o ritual, a convenção do jogo impede isso. Mas não sei até que ponto a entrega, a aceitação de algo maior do que a luta não é algo mais humano. Não tenho como não pensar que há algo de errado em um jogo que não permite a dignidade de reconhecer a superioridade do adversário.
Das lembranças daquela noite, há uma que guardo com mais carinho, pois é a que me faz rir e contar a história sem nenhuma vergonha. Depois de terminado o espetáculo, durante o coquetel que se seguiu, uma moça se aproximou e disse:
"Parabéns! Eu adorei o final de vocês! Foi bem incomum o arranjo, com cada um parando e saindo. Como vocês tiveram a ideia? Eu demorei pra entender, mas achei genial!"
Até hoje eu não sei se ela estava falando sério.
Entre 87 e 90 eu fiz parte de uma banda de música no Jd. São Paulo. Ainda guardo alguns bons amigos daquela época. No final de cada ano, fazíamos uma festa com um sarau. Pequenos grupos eram formados para tocar uma ou duas peças cada.
Naquele ano, acho que em 89, todos os trompistas resolveram apresentar um número. Um pout-pourri de músicas eruditas com destaque para temas escritos para trompas. Éramos cinco: O Davi, que fez o arranjo, o Marcelo, o Flávio, o Almir e eu. O arranjo não era muito complexo. Alguns temas se sucediam, tocados a três vozes. Não havia solos nem maiores complexidades. Mas em sua simplicidade os temas festivos e solenes de diversas épocas soavam muito bem. A peça se iniciava e encerrava com uma fanfarra da sinfonia Nº 31 de Haydn, não por acaso, conhecida como "hornsignal" (o chamado das trompas). Entre os dois extremos, temas de Beethoven, Mahler e Mozart cuidadosamente interligados e mesclados. Ensaiamos nossas partes separadamente e, se me lembro bem, fizemos dois ensaios em conjunto. O primeiro, na minha casa. Percebemos que tínhamos um pequeno problema para sincronizar a entrada da fanfarra final. Tentamos algumas alternativas que envolviam uma pulsação marcada pelo Davi, com o próprio instrumento. Funcionava bem, mas por alguma razão que pareceu boa na hora, achamos melhor que cada um contasse mentalmente. Depois de tentarmos umas quinze vezes, finalmente parecia que tínhamos encontrado o tempo certo e encerramos o ensaio.
O segundo ensaio foi na véspera do espetáculo, na casa do Marcelo. Iríamos apenas refinar alguns detalhes, mas estávamos satisfeitos com nosso número. Estava chovendo naquele dia. A casa do Marcelo tinha uma escadaria que levava da garagem à sala onde estávamos nos preparando pra ensaiar. Faltava chegar uma pessoa. Quando ela finalmente chegou, o Marcelo saiu para abrir o portão. Eu o vi sair pela porta e sumir. A próxima coisa que ouvi foram gritos. O Marcelo tinha escorregado e caído. Se machucou muito e naquele momento o ensaio foi cancelado. Alguns foram ao pronto-socorro com ele e outros foram embora. Felizmente, embora machucado, não houve nada sério. Mas perdemos um jogador, digo músico, não ensaiamos nada e ainda ficamos bem abalados com tudo isso.
Quando chegou a nossa vez, fomos até o palco, nos sentamos com as partituras à frente e começamos. A entrada foi muito bem e o segundo tema, acho que era de Mozart, também. Tivemos pequenos problemas de afinação no Mahler e chegamos ao Beethoven sem muitos percalços. Mas esse tema acabou e chegou o momento em que tínhamos que contar mentalmente e entrar novamente no Haydn. Não sei dizer ao certo o que houve a seguir. Minha memória é confusa nessa parte. Cada um contou algo inteiramente diferente, entrou em momentos diferentes e em andamentos diferentes. O caos que se ouviu a seguir só foi superado pelo fato de que, sem concluir, alguém parou, depois outro, e outro, até que, sem saber bem o que fazer alguém levantou e saiu pela frente do palco. Os outros foram saindo pelos lados e pelo fundo. O público, que deve ter ficado tão confuso quanto nós, começou a aplaudir, mas não havia ninguém no palco para receber os aplausos.
E foi assim a minha maior humilhação pública. Hoje, durante o jogo, houve um momento em que eu fiquei com pena daqueles garotos. Pensei se não seria melhor simplesmente saírem do campo, um a um. Cada um por um lado, deixando confusos adversários e torcedores. A regra, o ritual, a convenção do jogo impede isso. Mas não sei até que ponto a entrega, a aceitação de algo maior do que a luta não é algo mais humano. Não tenho como não pensar que há algo de errado em um jogo que não permite a dignidade de reconhecer a superioridade do adversário.
Das lembranças daquela noite, há uma que guardo com mais carinho, pois é a que me faz rir e contar a história sem nenhuma vergonha. Depois de terminado o espetáculo, durante o coquetel que se seguiu, uma moça se aproximou e disse:
"Parabéns! Eu adorei o final de vocês! Foi bem incomum o arranjo, com cada um parando e saindo. Como vocês tiveram a ideia? Eu demorei pra entender, mas achei genial!"
Até hoje eu não sei se ela estava falando sério.
Comentários
Postar um comentário