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O serrador

Foi no início de uma manhã de sábado que cheguei ao vilarejo. No dia seguinte teria que viajar para a capital, onde o congresso aconteceria. Sabendo que não era um desvio muito longo, aproveitei a viagem para passar na vila que conhecia de muitas histórias. Teria um dia inteiro para andar pelas ruas que os pés do meu avô haviam pisado pela última vez há mais de sessenta anos e, quem sabe, encontrar ali algo que me fizesse sentir que ele ainda estava comigo.
Da vilinha da infância eu só tinha ouvido falar pelas histórias que ele contava e dela só sabia o nome. A família toda tinha mudado pra São Paulo quando ele era jovem. Nunca mais voltaram nem para visitas. Mas a pequena cidade foi junto com ele por toda a vida. No jeito de falar, no amor pela terra e no artesanato que fazia. Era só quando eu ia até lá que ficava hipnotizado brincando, enquanto ele me contava histórias da pequena vilinha de São Bento.
Foi em uma dessas visitas que eu soube da única namorada que ele teve além da minha avó. O nome dela era Rosa e se eu confiasse na memória dele, devia ser uma menina linda. Na época, eu estava meio apaixonado por uma menina na escola e quando pedi um conselho amoroso, ele se lembrou da Rosinha. Quando falei que estava com medo que a menina não gostasse de mim ele me disse que isso era bobagem. “Ela deve gostar de você e você não sabe. Nem vai saber se não falar com ela”, foi o que ele me disse antes de me contar sobre a Rosinha. Disse que eles tinham namorado por muito pouco tempo logo antes de ele sair da cidade. “Se eu soubesse, tinha deixado de ser bobo e aproveitado mais”. Não me deu mais detalhes, mesmo que eu insistisse. Era uma história há muito terminada e eu sabia que depois disso ele tinha tido uma vida boa com minha avó, mas ainda assim, pude perceber a saudade em sua voz.
Agora, chegando à vila, eu não sabia muito. Tinha poucos nomes e nenhum sobrenome na memória. Podia procurar, mas era impossível saber se alguém que meu avô conheceu ainda vivia ali. Fiquei contente apenas por estar na cidade e procurar os lugares de que ele falava. A igrejinha, a escola, o rio. Um passeio a pé e eu veria tudo isso. Assim que saí da pequena rodoviária, perguntei a algumas pessoas em um café se conheciam uma pousada pra eu ficar até o dia seguinte. O dono do bar chamou um menino que passava por ali: “Paulinho, leva esse moço à pensão da dona Alice!” O dia estava escuro e fechado e antes que virássemos a esquina, grossas gotas de chuva começaram a cair. Corri com o menino e ele me mostrou uma casa grande na esquina. “É ali”! – Disse enquanto continuou seu caminho para se esconder em um toldo rua abaixo. Fui até o alpendre e bati na porta. Uma moça veio abrir e entrei no salão onde havia um pequeno balcão. Enquanto secava um pouco as gotas no casaco e na mochila, ouvi na sala ao lado os ruídos de talheres e xícaras. A mulher, que era a dona da pousada, me deu uma chave e avisou que, se quisesse, eu ainda poderia tomar o café da manhã. Deixei minhas coisas no quarto e desci novamente.  Dona Alice me conduziu para o salão do café por um corredor onde havia uma cristaleira cheia de objetos. Meus olhos foram atraídos para um deles: um boneco serrador, igual aos que meu avô fazia. Ele tinha esse hábito de fazer coisas. Enfeites e brinquedos de madeira. Dizia que o lembravam de casa. Eram bilboquês, piões, um malabarista daqueles que se mexem quando se aperta duas varetas. O que eu mais gostava era um serrador. Um boneco que ficava preso a um arame duro e com um peso preso na perna. Quando se colocava o arame na borda de uma mesa, o boneco ficava pendurado para fora e balançava para frente e para trás. Eu costumava ficar horas brincando com um desses sempre que ia visitá-lo. Era idêntico ao que agora eu via na vitrine do corredor.
– Olha, que coincidência! – Eu disse, parando para olhar. – Meu avô fazia um bonequinho igualzinho a esse. Ele morou aqui quando era novo antes de ir pra São Paulo.
– Essas coisas são da minha mãe. Ela adora esse bonequinho. É um tipo de artesanato que se faz muito por aqui. Acho que ela já tem esse aí desde criança. – Respondeu, retomando o caminho pro salão.
Enquanto tomava o café, percebi uma senhora de cabelos brancos conversando com Dona Alice e após uns instantes ela veio até mim. Perguntou se estava tudo bem com o café e depois continuou:
– Minha filha falou que o senhor tem família aqui. Seu avô?
– Ah, ele saiu daqui há muito tempo. Foi pra São Paulo na década de 50 e acho que nunca mais voltou. – Respondi. – Será que a senhora já estava aqui naquela época?
– Minha neta falou que você viu o bonequinho serrador. Por isso ela me chamou. Ela sabe que eu gosto muito daquele boneco porque é a única lembrança que tenho de um amigo muito querido. Como se chama seu avô?
– Ele se chamava Francisco. – Falei também o sobrenome. Vi que ela abriu um sorriso. Aquela mulher à minha frente devia ter conhecido meu avô.  – Ele morreu no ano passado, mas nunca se esqueceu daqui. Me contou muitas histórias desse lugar.
Seu sorriso se apagou um pouco quando falei da morte.
– Ah, que pena! Ele era meu amigo. Não deve ter falado de mim, mas eu gostava muito dele. Fomos criados em casas vizinhas. Meu nome é Rosa. Ele me chamava de Rosinha.
Eu já tinha planejado procurar a Rosinha, mas não acreditei em minha sorte de encontrá-la assim, no primeiro lugar a que fui. Certamente ninguém acreditaria se eu contasse essa história. Contei a ela que meu avô tinha falado sobre ela e a história que ele tinha me contado.
– Ele te falou que eu fui namorada dele? – Ela perguntou com um leve sorriso. Depois deu uma risada gostosa. – Que interessante saber disso. Falamos mais um pouco e combinamos uma conversa mais longa para mais tarde, depois de meu passeio. A chuva passou logo e eu consegui dar uma volta e conhecer grande parte da cidade em poucas horas. Quando voltei, Dona Rosa já me esperava com o café preparado em uma saleta no fundo da casa. Na mesa de centro à sua frente, o bonequinho balançava.
– É bonitinho, não é? – Ela disse, olhando o brinquedo. – Ele fazia essas coisas. Era o orgulho dele. Esse aqui era o que eu mais gostava. Pedi pra ele muitas vezes mas ele não me dava.
– Vocês foram amigos por muito tempo? Ele me disse que perdeu tempo e que vocês namoraram por muito pouco tempo, mas não deu muitos detalhes.
– É. – Ela voltou a rir como se eu tivesse falado algo engraçado. – Um tempo curto demais.
Pedi que ela me contasse e ela começou:
– Nós fomos amigos desde o berço. Eu morava em outra casa. Essa o meu marido construiu depois que casamos. Eu e seu avô morávamos do outro lado da cidade, pra lá da igreja. Nós tínhamos a mesma idade e eu gostei dele desde que me lembro. Não sei se ele também já gostava de mim. Nós brincávamos juntos. Minha família e a dele eram muito amigas. Um vivia na casa do outro. Naquele tempo menino e menina não eram de brincar juntos, mas eu gostava de ficar por perto quando ele brincava com o meu irmão. Eu ficava lá com a minha boneca. Eles não gostavam muito, mas deixavam eu ficar perto pra não levarem bronca. Ele devia ter uns dez anos quando o tio dele ensinou a fazer essas coisas de madeira. Fazia e levava na escola. Todo mundo brincava, mas não dava nem emprestava. Se eu quisesse tinha que ser na casa dele. Eu ficava balançando o bonequinho e ele lá de longe, com meu irmão, jogando bola, rodando pião. Umas vezes ele ficava por perto lendo um livro. Eu gostava tanto disso!
Ela pegou o bonequinho e me deu pra eu olhar de perto. Era feito de um pedaço de madeira esculpido de forma grosseira. As roupas eram pintadas em cores vivas e o rosto era desenhado nas laterais da cabeça. Todo o conjunto era rústico e estava bem envelhecido, mas me lembrava muito o bonequinho com que eu tinha brincado tantas vezes e que não via há anos. Não pensava mais nele, perdido em meio a muitos outros esquecimentos.
– Um dia, nós já éramos mais velhos, teve uma festa junina. – Ela continuou a história. – Uma prima minha veio de outra cidade e nós fomos juntas à festa. Ela foi brincar nas barracas e eu sentei em um banco. O Chiquinho veio e ficou conversando comigo. Eu estava adorando aquilo. Fazia de tudo para ficar perto dele e naquele dia até achei que ele também estava gostando de ficar comigo. Minha prima voltou e me perguntou quem era aquele menino. Eu nem pensei e falei “É meu namorado, não é”? Ele ficou me olhando, atrapalhado, sem entender nada. E respondeu com um “Não” meio desconfiado. Na hora eu morri de raiva, puxei minha prima e saí dali. Depois eu pensei bem e hoje eu acho que peguei ele de surpresa. Acho que o “Não” que ele disse não era assim um “Não”. Era mais uma pergunta, como “Não... sou”? Mas na hora eu fiquei brava e não quis falar com ele por muito tempo. Depois de umas semanas ele veio me procurar. Falou que ia embora com a família pra São Paulo e me pediu desculpas pela festa. Falou que tinha falado sem pensar. Eu vi que ele estava mesmo sem jeito. Então ele me deu uma caixinha de presente e foi saindo. E antes de sair me deu um beijo. Na boca. Meu primeiro beijo. E acho que o dele também. E depois saiu andando rápido. Acho que foi esse o tempo de nosso namoro. Na caixinha estava o bonequinho.
Ela sorriu e eu sorri junto com ela. Fiquei pensando no meu avô, o homem que já conheci adulto e seguro e que sempre me ensinava tudo, como um menino desajeitado. Fiquei feliz por ter conhecido aquela senhora que, como ele, tinha tido outra vida depois dele, mas nunca tinha se esquecido a amizade de infância.
No dia seguinte, de manhã, enquanto pagava a conta, ela veio se despedir.
–Obrigada pela visita. Você me lembrou um pouco o jeito dele, você sabia?

E esse foi o melhor elogio que ela poderia ter feito.

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