Lembro bem daquela tarde. Era um
dia na década de setenta. Só não sei bem o ano. 77, 78 talvez. Estávamos eu e o
Fábio na casa da Luciana. O pai dela era dono de uma agência de turismo e a
família morava em um apartamento bem grande na Alameda Casa Branca. Estávamos
fazendo um trabalho de OSPB. Era uma daquelas bobagens ufanistas da época.
Tinha sempre uma frase de efeito ou um slogan que as pessoas colavam nos carros
ou uma canção que ficava aparecendo toda hora na TV. “Eu te amo, meu Brasil”,
“Esse é um país que vai pra frente”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A moda da vez
era um cata-vento verde-amarelo e uma canção dos incríveis: “O Brasil é feito
por nós”. E nós três fomos à casa da Lu fazer o trabalho: montar um monte de cata-ventos e distribuir entre as crianças menores que iriam representar nossa
escola no desfile de 7 de setembro. A professora deu para cada grupo um monte
de folhas de cartolina de duas faces: uma verde e outra amarela. Nós tínhamos
que fazer quadrados, depois cortar as diagonais e enrolar as pontas para
dentro. Eu e a Luciana fazíamos isso e o Fábio prendia o cata-vento a um palito
de madeira, usando um alfinete comprido.
Conversávamos sobre muitas coisas.
A Luciana, o Fábio e eu éramos grandes amigos. Fazíamos questão de sempre fazer
o mesmo grupo. Mas naquele dia, notei que a Lu não parecia bem. Trabalhava em
silêncio. Saía da sala muitas vezes e demorava a voltar. Quando estava conosco,
aparentava irritação. Uma hora saiu para buscar algo de comer. Quando voltava
com uma jarra de suco, eu e o Fábio cantávamos a música da campanha. Ela ficou
muito irritada e mandou que parássemos. Disse que aquela era uma música idiota.
Depois foi até o aparelho de som e colocou um disco na vitrola. Ficamos
trabalhando ao som do Chico Buarque por um tempo, mas logo já estávamos de novo
conversando animadamente.
Quando os brinquedos estavam
prontos, eu quis sair à varanda para testá-los à brisa da tarde. Eu achava
divertido olhar enquanto eles giravam cada vez mais rápido, fazendo as cores se
misturarem em um amarelo esverdeado. Ficamos ali por um tempo e a conversa
acabou indo para a política. A Luciana falou que o país não estava tão bem como
o governo dizia. Que ela tinha um tio que era professor e que tinha sido mandado
embora porque não ensinava o que o governo mandava. Por isso não queria fazer aquelas
porcarias de cata-ventos. Eu e o Fábio não entendíamos o que ela dizia.
Gostávamos da vida que levávamos. Nossos pais tinham trabalho, estudávamos em
uma escola boa. Não conhecíamos ninguém que estivesse se dando mal com a
situação do país. Meu pai vivia dizendo que a revolução tinha dado um jeito no
Brasil, mas eu mesmo nunca pensava nisso. Na verdade, fiquei com um pouco de
medo pela minha amiga. Minha mãe dizia que o governo não gostava de
subversivos. E mesmo sem saber exatamente o que aquela palavra queria dizer, entendia
que eram pessoas que não gostavam do país. Acho que acabei falando isso pra
Luciana, porque me lembro que a nossa conversa acabou em uma briga e ela nos mandou
embora. Eu saí dali achando que aquilo era um grande exagero. Coisa de menina,
devo ter pensado.
No dia seguinte, ou alguns dias
depois, não me lembro bem, era o dia da semana em que sempre hasteávamos a
bandeira e cantávamos o hino antes da aula. Todos os alunos da minha série
tinham feito os cata-ventos e nós os distribuímos por todas as turmas. Logo
depois, todos os levantaram e cantamos o “jingle” da campanha seguido do hino.
Eu percebi que a Luciana não cantava e estava com os olhos cheios de lágrimas.
Todo mundo percebeu. Eu e o Fábio desconfiamos que isso era por causa de tudo
aquilo que ela tinha dito no outro dia. Depois do hino, fomos à aula e nos
corredores, ouvi algumas pessoas comentando. Alguém falou que era por causa de
um menino que ela chorava. Até me perguntaram se não era eu quem tinha partido
o coração dela. Já na aula, a professora elogiou o nosso trabalho, falou sobre
como tinha sido bonito e emocionante ver todos aqueles cata-ventos girando. E,
convencida de que a Luciana também tinha se emocionado até as lagrimas pela
mesma razão, deu ao meu grupo a nota máxima e a usou como exemplo de amor à
pátria. Eu desconfiei naquela hora que a Lu deve ter odiado aquela professora
com todas as suas forças.
Depois que terminamos a escola,
tive pouco contato com ela. Como todo mundo naquela época, quando tive um pouco
mais de informação, infelizmente apenas depois de entrar na faculdade, comecei
a perceber que ela sempre tinha tido razão e que eu tinha sido muito ingênuo naquela época. Tive inveja daquela amiga que, de alguma forma, tinha
conseguido perceber antes de mim o que realmente se passava.
Só desatei esse nó muito tempo mais
tarde. Mais de dez anos depois daqueles dias, encontrei a Luciana no casamento
de um de nossos ex-colegas. Foi apenas então, em uma mesinha no salão de um
buffet, que ela me contou algo que nem eu nem o Fábio jamais havíamos desconfiado.
Naquela mesma tarde em que trabalhávamos na casa dela, seu tio Renato, aquele
de quem ela havia nos falado, estava escondido em silêncio no quarto de
hóspedes do apartamento. Ele estava fugido tentava sair do país, mas tinha que esperar uns dias escondido até conseguir
documentos falsos. Contou que aqueles tinham sido dias felizes. Que seu tio e
ela haviam passado muitas horas conversando sobre muitas coisas e que ele havia
lhe contado sobre o que realmente acontecia no país e no mundo. Falou desses
dias com um sorriso tranquilo que só quem já chorou demais por algo pode ter ao
falar disso. Contou enfim, que naquela manhã, na mesma hora em que cantávamos o
hino de forma festiva, ela sabia que seu tio estava indo embora com destino
incerto. Ela nunca mais voltou a vê-lo. Só fui conhecer seu rosto outro dia,
quando vi seu nome e sua foto em uma lista de desaparecidos.
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